Mediação em tempos de crise

  1. Introdução:

Foi com muita felicidade que li o artigo “Mediação, mais do que nunca” que o advogado Amir Achcar Bocayuva publicou em “O Globo”, na edição de 29 de março. Sim! Mediação, mais do que nunca, é exatamente o que precisamos nestes tempos de crise.

A mediação é uma forma consensual de solução de conflitos, no qual uma pessoa independente e imparcial (o mediador) auxilia duas partes contrapostas a negociar um acordo que seja de interesse e no benefício comum.

O mediador não é parte do conflito e nem do acordo que será feito. Ele é um profissional que, com o uso de determinadas técnicas e por meio de princípios e obrigações que garantem a sua independência e imparcialidade, facilita a comunicação entre as partes, de forma que elas —por sua livre e espontânea vontade —, negociem e cheguem a um acordo.

A mediação é um instituto jurídico previsto no Código de Processo Civil e regulado por uma lei específica (Lei 13.140/2015 – Lei de Mediação), o que garante plena segurança jurídica. Não é meu objetivo explicar e muito menos exaurir os princípios e as regras que regulam a mediação. Por ora, quero apenas enfatizar três de seus benefícios, e apontar o motivo da importância de olharmos para a mediação com carinho, especialmente no momento de crise que vivemos.

  1. Diferenciais da mediação – porque mediar:

Os benefícios da mediação que quero ressaltar são os seguintes: (1) a autonomia de vontade; (2) a confidencialidade; e (3) a segurança jurídica. Os dois primeiros são seus princípios basilares e o terceiro é uma importante consequência. Quero deixar claro que existem outros princípios informativos, que são fundamentais para o entendimento da mediação, seus propósitos, limites e objetivos. Apenas não tratarei deles neste trabalho, pela limitação de escopo.

Começo pela autonomia. Trata-se de um princípio jurídico presente em vários aspectos de nossa vida, e não apenas na mediação. Mas pergunto de forma não técnica: o que significa o princípio da autonomia de vontade, quando estamos a falar de mediação

Basicamente, ele significa que o próprio indivíduo é a pessoa que está em melhor posição para entender os seus problemas, desejos, interesses e necessidades, e também para decidir como endereçar e solucionar os seus conflitos e questões.

Ou seja, na mediação, as partes em conflito não abrem mão, em momento algum, do seu poder, protagonismo e responsabilidade na identificação do que é importante ser solucionado e na definição das melhores opções para que esta solução tenha lugar, por meio de um processo negocial com a outra parte. Não há delegação de poder de decisão para um terceiro (juiz ou árbitro). São as partes que decidem, em conjunto e consensualmente, se chegam ou não a um acordo e em que termos este acordo será feito. O mediador auxilia, mas não substitui as partes, em seu poder de decisão.

Também a confidencialidade não é um instituto novo ou exclusivo da mediação. O diferencial da confidencialidade na mediação é o tratamento previsto na sua lei reguladora, que além de impor a obrigação de sigilo às partes e aos mediadores, amplia este dever a qualquer terceiro que participe da mediação (como por exemplo, advogados e consultores externos) e proíbe expressamente a utilização das informações ali produzidas como prova em processos judiciais ou arbitrais. A proteção legal conferida às informações reveladas em mediação cria um ambiente favorável à abertura negocial, ambiente este muitas vezes difícil de ser obtido em uma negociação bilateral, mormente se esta negociação precede um possível litígio. Voltaremos mais tarde a este ponto.

E assim chegamos à segurança jurídica, que não deixa de ser um corolário dos itens anteriores. Aqui, os pontos a serem ressaltados são: (a) a previsão expressa de que o acordo celebrado em mediação constitui título executivo que poderá ser judicial (se homologado judicialmente) ou extrajudicial; e (b) a suspensão dos prazos prescricionais, que começa a valer a partir da assinatura do termo inicial da mediação e perdura até a celebração de acordo ou da lavratura de termo de encerramento de mediação, seja pelo mediador, caso constate impossibilidade de acordo, seja por iniciativa de qualquer uma das partes.

  1. Mediação em tempos de crise:

Em um contexto de crise, como a que estamos vivendo, a necessidade pela mediação me parece ser ainda mais acentuada. Dificilmente uma empresa que precisa renegociar um contrato de locação comercial, por exemplo, terá apenas este problema. Ela terá outras questões a enfrentar: como pagar e manter seus funcionários, quitar tributos, gerar receitas, etc. E toda a sua cadeia de clientes e de fornecedores possivelmente também terá sido afetada e necessita igualmente ser atendida.

É certo que o direito oferece meios de proteção para uma parte em dificuldades. Argumentos como força maior, onerosidade excessiva, etc., permitem a revisão ou o término de contratos. Obrigações podem ser parceladas em juízo ou em âmbito administrativo e empresas em risco de insolvência podem se socorrer de meios de negociação coletiva, como a recuperação judicial e a recuperação extrajudicial.

Contudo, não basta saber que direitos estão disponíveis. É fundamental entendermos o impacto que medidas judiciais ou arbitrais terão para as demais pessoas com as quais nos relacionamos e fazemos negócios. Um litígio para renegociar ou rescindir um contrato pode até ser bem sucedido, mas mesmo neste caso, ele pode afetar a capacidade de uma empresa de fazer negócios futuramente, seja pelo comprometimento de uma relação de confiança, seja pela saída do mercado de um cliente ou fornecedor que não conseguiu se manter.

Ao analisar os métodos para a solução de um conflito, a parte deve considerar o tempo e o custo da solução pretendida, em cotejo com as demais alternativas disponíveis, e também avaliar a sua efetividade prática. Muitas vezes, uma ordem judicial poderá chegar em momento tardio, em que a parte não terá condições de cumpri-la, ou mesmo antecipar um processo de insolvência, no qual os bens pretendidos poderão ser rateados entre diversos credores. Com isto, um processo já longo e custoso, poderá se tornar substancialmente ineficaz.

É aqui que entra a mediação. Por ser uma forma consensual de solução de conflitos, ela permite uma abordagem mais amigável, oferecendo a possibilidade de uma resposta rápida e sob medida para as partes, que terão sempre o poder decisório. A mediação também permite que informações sensíveis sejam tratadas de forma confidencial, ao contrário de um processo judicial, no qual as informações são, em regra, públicas. E ao final, as partes terão plena segurança: (i) de que o acordo feito em mediação terá a força de um título executivo; (ii) que as informações reveladas não poderão ser usadas contra elas em ações futuras; e que (iii) em caso de ausência de acordo, não terá ocorrido nenhum prejuízo com relação a prazos prescricionais.

  1. Pensando fora da caixa:

Como vimos acima, a mediação pode ser um instrumento célere e eficaz para solução de conflitos em geral, especialmente os que pressupõem continuidade de relacionamento. Destaco aqui três fatores, que embora presentes em situações normais, ganham relevância em contexto de crise.

O primeiro fator é o tempo. Uma negociação, seja ela direta ou mediada, toma semanas — ou no máximo meses —, ao passo que um litígio normalmente leva anos. Ou seja, se uma negociação com colaboradores ou fornecedores não se resolver logo, não se deve esperar que eles permaneçam disponíveis por muito tempo.

O segundo fator é o controle, a capacidade de se manter o poder de decisão. Este fator ganha relevância quando se considera que, em uma crise, não há apenas um problema a ser resolvido, mas vários simultaneamente. O valor em dinheiro comprometido em um acordo (ou ordem judicial) deixa de estar disponível para outros usos. A necessidade de se costurar vários acordos simultaneamente estimula a criação de opções e a avaliação de alternativas em conjunto com as demais partes. Exemplificando opções a serem criadas, podemos identificar que partes aceitariam receber menos em curto prazo em contrapartida a um maior preço ou em troca de compromissos mais longos (postergação de vencimento ou parcelamento). Ou, ao reverso, que partes aceitariam pagar antecipadamente, em troca de uma redução de valor total (desconto).

Já o terceiro fator que quero realçar é a credibilidade. Acordos celebrados por partes que desejam permanecer atuando em determinado mercado e negociados com base em informações seguras e adequadas (protegidas por obrigação de sigilo), tendem a ser mais fáceis de serem cumpridos. Isto se dá exatamente por terem sido propostos e produzidos com base em premissas e expectativas realistas e sustentáveis. Quando se considera que há todo um fluxo de contratos a ser renegociado (e não apenas um), mais importante é a credibilidade para o sucesso, tanto das negociações em si como para o cumprimento das obrigações assumidas.

  1. O papel do mediador:

Por fim, devo tratar do papel do mediador, considerando o contexto de uma crise (seja esta ou qualquer outra). Em verdade, a primeira coisa que se deve esclarecer é que não há uma diferença efetiva de deveres, apenas por se estar diante de uma situação de estresse coletivo. Os deveres, compromissos e dedicação do mediador serão sempre os mesmos, a qualquer tempo.

O que torna a atuação do mediador mais relevante em uma época de crise é a importância de sua atuação, comparando-se os dois contextos. Um dos princípios de mediação que não abordei anteriormente é o princípio da decisão informada[i], por meio do qual o mediador obriga-se a zelar pela higidez do processo de mediação. Com isto, ele deve se certificar que as partes estão negociando e decidindo com liberdade, sem coação ou outros vícios de consentimento, mas também deve incentivá-las a buscar informações que melhor as habilitem a tomar suas decisões negociais.

Não se espera que o mediador seja mais qualificado do que as partes que negociam, e muito menos que ele confunda o seu papel com o de consultor (o que seria violação do dever da imparcialidade). Porém, é fundamental que ele seja capaz de perceber distorções flagrantes, que possam tornar o acordo ineficaz (jurídica ou economicamente). E estas distorções são mais comuns em momentos de crise, quando as pessoas e empresas estão mais fragilizadas e sob pressão de diversas fontes.

Com isto, o profissional qualificado em mediação deve estar pronto para atuar desde o início, identificando, em conjunto com cada parte, quais pontos podem (ou deveriam) ser levados em consideração, e participar com eles na criação de uma estratégia negocial comum, atuando como um “designer” de sistemas de solução de conflitos.

Uma empresa que queira iniciar um processo de negociação, de forma integrada com mais de um cliente, fornecedor, colaborador ou parceiro, pode e deve considerar trazer um profissional qualificado em mediação desde o início. Caberá a este profissional definir toda a estratégia de negociação, identificando os interesses e necessidades de todas as partes a serem envolvidas, bem como os eventuais obstáculos a serem superados e idealizar o fluxo de sessões de negociação e de mediação, avaliando ainda, outras formas de solução de conflitos que possam se mostrar úteis para o processo (pareceres não vinculantes, audiências públicas, etc.).

Naturalmente, este profissional deverá estar sempre atento para avaliar se sua atuação na formação da estratégia negocial poderia se caracterizar como uma situação de conflito de interesses, como por exemplo, se sua participação como “designer” incluir a satisfação dos interesses de seu cliente ou de uma das partes. Se for este o caso, o profissional deve revelar tal fato a todas as partes envolvidas e estar pronto para: (i) limitar sua atuação a um serviço de consultoria; e (ii) delegar a função de mediação propriamente dita a um outro profissional, garantindo a independência, imparcialidade e higidez do processo de mediação.

  1. Conclusões:

A primeira conclusão que devemos tirar deste momento é a exortação feita no início deste texto: “mediação mais do que nunca”. De fato, nos tempos em que estamos vivendo, devemos, mais do que nunca, nos forçar a tomar as rédeas de nossas vidas e deixar de depender apenas da decisão de terceiros, por mais qualificados e bem intencionados que sejam. Trata-se de uma mudança de atitude que demandará muita dedicação e tenacidade de empresários, advogados (públicos e privados), juízes, e outros atores, acostumados que somos em levar a juízo o que podemos decidir por conta própria.

A segunda conclusão é dirigida aos mediadores: temos que estar prontos, preparados e motivados. Mediar não é fácil, mediar não é simples e mediar dá trabalho! Precisamos entender que os mediandos possuem necessidades e desafios complexos. Formação adequada, especialização e capacidade de comprometimento com o processo são fundamentais para uma boa mediação.

E por fim, a última conclusão: o escopo do trabalho do profissional de mediação não se limita às sessões de que este participa. Há um amplo espaço de trabalho, que pode se iniciar em uma pré-mediação, ou ainda antes, na formulação estratégica das negociações a serem efetivadas e no desenho das estruturas de solução de conflito a serem propostas.

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[i] O princípio da decisão informada encontra-se definido no art. 1º, inc. II do Código de Ética de Conciliadores e Mediadores Judiciais (Anexo III à Res. CNJ 125/10). De acordo com este dispositivo, o princípio da decisão informada corresponde ao dever do mediador “(…) de manter o jurisdicionado plenamente informado quanto aos seus direitos e ao contexto fático no qual está inserido”.

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