1. Objetivo:
O objetivo deste trabalho é descrever sucintamente o processo de suprimento e contratação de energia elétrica no Brasil, com foco na análise das relações jurídicas e econômicas entre os agentes vendedores e compradores de energia. Com isto, procuro oferecer subsídios para os aplicadores e operadores do direito, em suas análises e decisões em processos de renegociação ou revisão contratual, especialmente em momentos de crise, como a que estamos vivendo, com as restrições sociais causadas pela pandemia COVID-19.
Não será o meu objetivo analisar os argumentos que embasam juridicamente estes processos de revisão, por entender que eles já se encontram muito bem descritos e explicados na literatura especializada. Apenas apontarei os principais argumentos que vêm sendo usados e os apresentarei em cotejo com as consequências econômicas que eles buscam resolver.
Para fins de metodologia de trabalho, inicialmente farei uma breve descrição dos processos de geração e distribuição física de energia e em seguida, uma apresentação, também resumida, dos processos de contratação de venda e compra da energia, abrangendo os ambientes de contratação livre e regulado. Meu foco se dará na análise das principais obrigações contratuais dos produtores e vendedores de energia elétrica, e consequentemente, entender o que, essencialmente, é o objeto dos contratos de compra e venda de energia elétrica.
Após, abordarei os problemas que vem ocorrendo no setor em decorrência das medidas de restrição causadas pela pandemia, descrevendo os pleitos apresentados, suas razões econômicas e o seu impacto nas partes que recebem estes mesmos pedidos. Nesta análise, busco me focar na relação entre os pleitos apresentados e as contrapartidas contratuais estabelecidas nas relações de compra e venda, questionando se eles de fato, apresentam soluções adequadas para os problemas que buscam resolver.
2. Introdução:
O setor elétrico brasileiro possui algumas particularidades e características próprias, que, se não únicas no mundo, trazem consequências que devem ser bem entendidas, não apenas pelos agentes do setor (que por óbvio as conhecem bem), mas, sobretudo, por terceiros que são afetados ou chamados a tomar decisões de variadas naturezas, sejam tais decisões jurídicas, econômicas, ou mesmo políticas.
Como este artigo é um trabalho meramente introdutório, vou me limitar a apenas duas destas características e analisar como o seu correto entendimento pode contribuir para uma melhor avaliação das consequências de decisões tomadas por agentes externos a este setor. As características que quero apontar são: (i) a interligação do sistema elétrico brasileiro; e (ii) a existência de dois ambientes de contratação de energia, o livre e o regulado. A primeira característica é importante para entendermos a natureza física da produção e consumo de energia elétrica. A segunda, por outro lado, trata da circulação jurídica e econômica desta mesma energia.
Veremos que enquanto a energia física segue um caminho bem direto de sua fonte produtora ao consumidor final, a energia contratual pode seguir outro percurso, mais comprido e ramificado. Entender a diferença entre estes dois mundos, o físico e o econômico é, a meu ver, fundamental para qualquer decisão sobre repactuação de obrigações contratuais no setor elétrico.
Importante, ainda, apontar, que o setor elétrico não é único, sendo composto por diversos agentes prestando serviços públicos essenciais e complementares entre si, em suas respectivas áreas de atuação ou concessão, com forte presença de investidores privados.
3. Mundo Físico – Interligação do Sistema Elétrico Brasileiro:
As atividades de produção (geração), transporte (transmissão e distribuição) e consumo de energia elétrica no Brasil ocorrem de forma centralizada e interligada, sob a responsabilidade do Operador Nacional do Sistema Elétrico, conhecido por sua sigla “ONS”. O ONS é responsável, portanto: “pela coordenação e controle da operação das instalações de geração e transmissão de energia elétrica no Sistema Interligado Nacional (SIN) e pelo planejamento da operação dos sistemas isolados do país, sob a fiscalização e regulação da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel).”[1]
Em outras palavras, a interligação do sistema significa que a decisão de se operar ou não uma usina elétrica (i.e. se ela estará gerando energia em um determinado momento) não é feita pelas empresas geradoras, mas por um órgão centralizador. Há uma razão técnica para isto, na medida em que a energia, sob a forma de eletricidade, não pode ser armazenada, devendo a geração ocorrer simultaneamente ao consumo[2].
Embora a lógica da operação simultânea, como antes mencionado, seja técnica e necessária (e logo não exclusiva do Brasil), a decisão de se ter apenas um único sistema interligado, em um país com as dimensões do Brasil, é certamente um feito considerável e, provavelmente único. Cabe ressaltar que o ONS também “despacha” as linhas de transmissão e coordena a operação elétrica com as distribuidoras, de modo a assegurar o equilíbrio elétrico que mantém o funcionamento do sistema elétrico sem interrupções.
É, portanto, fundamental para o funcionamento do sistema elétrico brasileiro, a presença de estruturas (usinas geradoras de energia e linhas de transmissão e distribuição) em ‘stand-by’, que estejam prontas para operar mediante a ordem de despacho do ONS. Este fato, naturalmente, será refletido na lógica econômica dos contratos de compra e de venda do setor elétrico.
Com isto, vemos que, apesar da complexidade técnica e das dificuldades de operação em tempo real, o caminho físico da energia elétrica da usina geradora para o consumidor final é bem direto, passando pelos seguintes pontos: (i) ordem de despacho do ONS para o agente gerador; (ii) geração da energia e seu ingresso na rede básica de transmissão (ou diretamente nas redes de distribuição); e (iii) entrega ao consumidor final, pelo agente distribuidor (ou pelo agente transmissor, dependendo da interligação deste último).
Os dados de entrega e de consumo de energia, por sua vez, são medidos pelos próprios agentes e enviados à Câmara de Comercialização de Energia Elétrica – CCEE, (entidade responsável pela gestão dos contratos de compra e venda de energia, desde a sua medição até a liquidação financeira), a qual irá verificar se os montantes de geração e de consumo físicos correspondem ao lastro contratual do agente em questão. É neste momento que ocorre a união destes dois mundos: o físico e o jurídico/econômico.
4. Mundo Econômico – Os Ambientes de Contratação:
A partir da entrega física da energia ao seu consumidor final, poderemos descobrir qual foi o seu caminho contratual. E veremos que a linha direta do mundo físico pode não se repetir aqui. O caminho contratual pode ser tanto direto, como o físico, ou ao reverso, bem mais tortuoso, passando por diversos agentes econômicos até encontrar o seu consumidor final.
Este caminho, por sua vez, dependerá do ambiente de contratação em questão. No sistema jurídico brasileiro, após a edição da Lei nº 10.848, de 15 de março de 2004, existem 2 (dois) ambientes de contratação de energia, quais sejam, o Ambiente de Contratação Regulada (“ACR”), também conhecido como ‘mercado regulado ou cativo’, e o Ambiente de Contratação Livre (“ACL”), também conhecido como ‘mercado livre’.
4.1 Ambiente de Contratação Regulada:
O ACR é o ambiente de contratação do qual participam, como consumidores finais, as pessoas físicas e jurídicas (de direito público ou privado), que não podem escolher o seu fornecedor, sendo obrigadas a comprar energia das empresas encarregadas de prestar o serviço público de distribuição de energia elétrica. Neste ambiente de contratação, o caminho econômico é muito similar ao caminho físico da energia, passando (como regra geral[3]), diretamente do agente gerador ao agente distribuidor, o qual, por sua vez, entregará a energia ao consumidor final.
Não quero dizer, com isto, que o ambiente regulado seja simples. Ao contrário, exatamente por disciplinar a contratação de energia pelos agentes prestadores do serviço público de distribuição, há grande sofisticação neste mercado e, como não poderia ser diferente, uma complexa estrutura regulatória que o ampara.
No ACR, a estrutura de contratação é desenhada para, simultaneamente: (i) proteger os investimentos necessários para se formar, manter e remunerar a infraestrutura responsável pela geração, transmissão e distribuição de energia; (ii) garantir competição entre geradores e distribuidores, de forma que o usuário final receba energia no menor preço possível (princípio da modicidade tarifária); e (iii) fornecer um ambiente de segurança jurídica, capaz de equilibrar os dois princípios anteriores e atender à multiplicidade de partes interessadas e de agentes envolvidos na prestação de um serviço público essencial.
Com isto, a compra e venda de energia no ACR possui várias peculiaridades e, tal qual a distribuição física, sua contratação também não é feita diretamente entre os agentes compradores e vendedores, sendo efetuada, obrigatoriamente, por meio de leilões públicos administrados pela CCEE[4]. Nestes leilões, os geradores e distribuidores competem entre si para, de um lado (as distribuidoras), comprarem a totalidade de energia para atendimento de seus mercados; e do outro lado (geradoras), para venderem sua capacidade de geração, ao menor preço para o usuário final (leilão de tarifas – preço decrescente).
Os leilões de energia podem se destinar ao atendimento da demanda futura das distribuidoras (leilões de energia nova), ou para ajustes em sua demanda atual (leilões de energia existente, leilões de ajuste, e mecanismos de venda de excedente). No primeiro caso, os geradores se comprometerão a investir na construção de novas unidades de geração, ao passo que nos demais, será usada a infraestrutura já existente. Em ambos os casos, os vendedores terão que: (i) garantir que gerarão energia sempre que despachados pelo ONS (nos montantes e preços definidos contratualmente quando do leilão); e (ii) que a capacidade vendida em leilão será afetada (comprometida) ao ambiente regulado, não podendo ser repassada para o ambiente livre[5].
Pelo que vimos acima, podemos concluir, portanto, que a principal obrigação dos agentes vendedores de energia no ACR é a de garantir a disponibilidade de energia para o serviço público de distribuição e não a venda de energia em si. Este fato não é sempre notado, mas é fundamental para a compreensão do funcionamento do setor elétrico brasileiro e também para a avaliação do equilíbrio econômico-financeiro dos contratos de compra e venda de energia neste ambiente.
4.2 Ambiente de Contratação Livre:
A conclusão contida no parágrafo anterior também é aplicável para os contratos de compra e venda de energia no Ambiente de Contratação Livre, ou ACL, embora este ambiente tenha relevantes diferenças em relação ao ACR.
O ACL, ao contrário do ACR, é o mercado que pode ser acessado por consumidores com determinadas características de consumo, que os tornam aptos a comprar energia de outros agentes, que não o distribuidor da área em que se encontram. Estes consumidores podem ser consumidores livres (que tenham demanda igual ou superior a 2 MW) ou consumidores especiais (demanda entre 0.5 MW e 2 MW), sendo a diferença entre eles o direito do consumidor livre de comprar energia de qualquer origem, enquanto que o consumidor especial apenas pode comprar energia proveniente de fontes incentivadas, como por exemplo, eólica, solar ou de pequenas geradoras hídricas.
Este ambiente de contratação permite aos consumidores, sejam eles comerciais ou industriais, adquirirem energia a preços distintos do mercado cativo (preços estes que tendem a ser mais baixos do que as tarifas reguladas), através de contratos bilaterais, firmados diretamente com agentes geradores de energia ou com agentes comercializadores. O processo de pactuação dos prazos, volumes e preços é inteiramente livre, cabendo às partes tomarem as suas decisões de risco ao definir as suas estratégias de compra e de venda.
Importante deixar claro que a diferença entre os ambientes de contratação (livre e regulado) não está na qualidade da energia recebida e nem na segurança do seu recebimento. Conforme explanado na parte inicial deste artigo, o caminho físico da energia será sempre o mesmo, indo do gerador para o consumidor final, por meio dos serviços públicos de transmissão e distribuição. O que ocorrerá no ACL será uma repartição dos contratos. Ao invés de um único contrato de compra e venda, o consumidor deverá celebrar 3 (três) instrumentos distintos, a saber: (i) contrato de conexão ao sistema de distribuição (CCD); (ii) contrato de uso do sistema de distribuição (CUSD)[6]; e (iii) contrato de compra e venda de energia elétrica em ambiente livre (CCEAL).
Os dois primeiros contratos regulam o fornecimento físico de energia elétrica, o que inclui a obrigação do agente distribuidor de assegurar os montantes de energia contratados e sua qualidade; enquanto que o terceiro contrato regula a circulação jurídica e econômica da energia, tendo por objetivo: (i) constituir e documentar o lastro contratual para os montantes de consumo (vide item 3 – Mundo Físico); e (ii) regular o preço que será pago pela energia contratada.
Por se tratar de um contrato que não dispõe sobre a entrega ou uso físico de energia elétrica, os contratos de compra e venda no ACL também podem ser celebrados por outro tipo de agente, denominado “comercializador”.
A função econômica do agente de comercialização será, assim, a de prover liquidez ao mercado, ofertando, por um lado, mais possibilidades de venda aos agentes geradores, que poderão desta forma, negociar preços, volumes e prazos de fornecimento mais adequados às suas estratégias de investimento e de operação, e do outro, oferecendo aos consumidores livres e especiais maior disponibilidade de opções, de forma que estes negociem a aquisição de energia de acordo com as suas características de consumo e estratégias de alocação de risco, absorvendo riscos de preço, volume e de prazo para prover a energia, conforme a demanda do consumidor final.
Poder-se-ia pensar que os contratos de compra e venda de energia elétrica no ACL teriam natureza meramente financeira, equiparada aos contratos de derivativos. Embora existam evidentes semelhanças e muitas características em comum entre eles (especialmente a sua função econômica de mitigar riscos financeiros), tratam-se de contratos de natureza jurídica absolutamente distintas.
E isto se dá pelo fato de os agentes comercializadores serem entidades sujeitas a fiscalização pelos agentes do setor elétrico brasileiro e dependentes de registro perante ANEEL e CCEE, como condição para o seu funcionamento. Têm, portanto, a mesma obrigatoriedade de apresentar lastro contratual para a energia por eles vendida, analogamente aos consumidores e geradores. Contrariamente aos instrumentos meramente financeiros, há, portanto, uma obrigação legal de entrega da energia vendida, por meio de uma tradição jurídica, em um ponto denominado “centro de gravidade do sub-mercado” e uma obrigação de aquisição e registro de lastro contratual correspondente.
A necessidade de obtenção e comprovação do lastro contratual e a sua total desvinculação das atividades de geração e de consumo físico terá um forte impacto no entendimento do objeto e função do contrato de compra e venda de energia no ACL.
Com isto, concluímos que no ACL, similarmente ao ACR, a principal obrigação assumida pelo vendedor de energia não será a sua entrega propriamente dita, mas sim: (i) a criação do lastro contratual para o agente consumidor; e (ii) a garantia do preço da energia, tenha ou não ocorrido o seu consumo.
5. Dificuldades trazidas pelas Medidas de Isolamento Social:
Entendido como funciona o mundo físico da geração e do consumo de energia elétrica, e também a forma de sua circulação econômica, apresento alguns desafios vividos pelos diversos agentes nesta crise atual e como estes agentes podem trabalhar para melhor endereçar estes desafios.
Como sabemos, o mundo, em 2020 está a passar por uma série de medidas de isolamento social que, entre outros efeitos, tem acarretado forte redução das atividades econômicas em geral e uma acentuada redução nos montantes de consumo de energia. Tal redução pode ser mais acentuada em alguns segmentos econômicos do que em outros, mas é certo que as atividades econômicas como um todo têm sido afetadas negativamente.
Neste sentido, tem sido noticiados casos em juízo, nos quais agentes consumidores que compraram energia no ACL pleiteiam o direito de pagarem apenas os montantes de energia efetivamente consumidos. Também têm sido anunciados outros pedidos, nos quais os agentes de distribuição (âmbito do ACR) requerem o direito de reduzir os montantes adquiridos das empresas geradoras. Para embasar juridicamente estes pleitos, são apresentados argumentos de variadas naturezas, que serão apontados no item 6, abaixo.
Não se pode olvidar que, muito provavelmente, os agentes que apresentam tais pedidos, sofreram redução substancial de seus montantes de consumo ou entrega de energia (conforme for o caso), e também severa redução de seus respectivos faturamentos, de forma que as obrigações de compra de energia passaram a pesar mais do que o inicialmente previsto, especialmente no momento em que tais agentes celebraram os seus contratos de compra de energia no ACL (caso dos consumidores) ou no ACR (caso das distribuidoras). Aqui, partirei do pressuposto de que todos estes pedidos foram formulados de boa fé, com base em impactos econômicos relevantes, e efetivamente incorridos por tais empresas.
6. Argumentos Jurídicos para Obrigatoriedade de Revisão Contratual:
Embora não seja o meu objetivo aprofundar qualquer discussão sobre os argumentos jurídicos que ensejam pedidos de revisão contratual, entendo pertinente ao menos listá-los, por serem eles a referência lógica para os pedidos apresentados.
São eles: (i) inexigibilidade de perdas e danos por motivo de força maior ou caso fortuito (artigo 393); (ii) resolução do contrato por onerosidade excessiva (art. 478 a 480); e (iii) revisão da obrigação contratual por desproporção entre o valor da obrigação entre o tempo da contratação e o da prestação (art. 317), todos do Código Civil. A estes argumentos, outros têm sido apontados, como por exemplo, a obrigação de renegociação decorrente de: (iv) alteração da base objetiva do negócio; ou (v) em atendimento ao princípio da boa-fé objetiva.
Não se nega que estejamos diante de um evento que não era esperado até o início deste ano e que provocou consequências econômicas severas. É possível, portanto, que determinadas prestações contratuais tenham se tornado fisicamente impossíveis de serem prestadas (o que caracterizaria, em princípio, caso fortuito ou de força maior) ou que o seu cumprimento tenha se tornado oneroso. Também é comum, em contratos de longo prazo e execução continuada ver o valor da mercadoria se alterar (para cima ou para baixo), quando comparados com o seu valor presente.
O que se não se pode deixar de fazer, contudo, é avaliar com precisão, por um lado: (i) se, de fato, a obrigação tornou-se física ou juridicamente impossível ou inútil; (ii) se o seu cumprimento se tornou oneroso, em função de fatos que alteraram o substrato econômico do contrato; e por outro (iii) se o motivo real do pedido apresentado não decorre de dificuldades de ordem econômica e financeira da parte que apresenta o pleito, não tendo, portanto, relação direta com a obrigação que se deseja alterar ou terminar; e (iv) em se tratando do caso anterior, se o remédio adequado, ao invés de intervenção em um contrato, não se deveria considerar outras opções, como por exemplo, o estímulo a soluções negociadas ou medidas de proteção contra credores.
Não vou considerar, aqui, hipóteses em que os pleitos apresentados embutem tentativas de se renegociar preços contratuais (p.ex. se estiverem substancialmente abaixo dos valores originalmente contratados), aproveitando-se indevidamente da situação de pandemia, ou ainda, de escolha seletiva de credores, para evitar um processo concursal.
Estas hipóteses, naturalmente, deverão ser avaliadas caso a caso, assim como a avaliação efetiva sobre os pressupostos fáticos e jurídicos para justificar um pleito de revisão, resolução ou de renegociação contratual. Aqui, repito, meu propósito não é substituir o trabalho de advogados e julgadores, mas sim o de oferecer uma contribuição em linha diversa, explorando a lógica econômica que ampara, a um só tempo, os contratos bilaterais de compra e venda de energia e o próprio funcionamento e equilíbrio do sistema elétrico brasileiro.
7. Correlação entre Pleitos de Revisão e as Obrigações do Contrato de Compra e Venda de Energia Elétrica:
Para avaliarmos se estes pedidos têm boa base jurídica e econômica, mas, sobretudo, para aferir se estes mesmos pedidos são justos e equitativos (e relacionados entre a proporção de obrigações contratuais reciprocamente assumidas), temos que considerar qual é o objeto real ou principal do contrato que se busca alterar e quais foram as suas premissas negociais. E como vimos ao longo deste trabalho, os instrumentos de compra e venda, tanto no ACR como no ACL, não têm por objeto uma entrega pontual de energia e tampouco o seu equilíbrio financeiro é estabelecido com base na geração ou no uso da energia.
Desta forma, qualquer pedido que envolva uma repactuação de contratos de compra e venda de energia, deverá, necessariamente, abranger as seguintes perguntas:
- qual a natureza jurídica e econômica dos contratos em questão;
- quais as trocas econômicas que são feitas pelas partes ao celebrarem o contrato;
- o novo pacto guarda correlação direta com as contraprestações recíprocas estabelecidas no contrato ou decorre apenas de alteração do estado econômico;
- a concessão do pedido de repactuação terá impacto na isonomia entre consumidores do ACR e do ACL;
- qual o impacto da continuidade da obrigação para a parte que pleiteia a repactuação;
- qual o impacto da nova obrigação contratual para a outra parte; e
- a parte que sofrer a repactuação poderá distribuir no mercado o impacto da renegociação?
Prometo não me demorar em cada um dos pontos acima, e tentarei abordá-los também resumidamente. O objetivo das afirmações seguintes é possibilitar o entendimento das questões econômicas que amparam os contratos de compra e venda no setor elétrico, não contendo qualquer avaliação sobre a presença ou não de fatos e condições para o deferimento de determinado pleito de renegociação. Passemos a eles:
Os itens (1), (2) e (3) foram o principal ponto deste artigo. Neles pudemos ver que as únicas pessoas que compram energia pura e simplesmente (e pagam por esta energia com base no seu consumo) são os consumidores cativos das distribuidoras de energia[7]. Os demais agentes (distribuidores de energia no ACR ou consumidor final do ACL) contratam o suprimento com base em uma expectativa, seja de seu mercado consumidor cativo, seja de seu próprio consumo futuro.
Podemos concluir assim, que pleitos que buscam uma alteração contratual, objetivando vinculá-la a um elemento que não é a base jurídica e econômica do contrato não pode ser a melhor solução para o conflito em questão. A alteração desta base por meio de decisões judiciais ou arbitrais abala profundamente a segurança jurídica que deve amparar um setor econômico, especialmente se este setor corresponde a um serviço público essencial e demanda vultosos investimentos em infraestrutura.
Passando ao item (4), noto que ele guarda alguma semelhança com os pontos anteriores, na medida em que ele passa pela avaliação do objeto do contrato e por uma decisão de cunho empresarial por parte dos agentes consumidores que atuam no mercado livre, em comparação com os clientes cativos do mercado regulado. A razão pela qual trato este item de forma apartada dos anteriores, é que ele apenas se aplica aos consumidores do ACL e não aos pleitos formulados pelas distribuidoras.
O consumidor cativo, ao permanecer no ACR, recebe uma estrutura de contratação rígida, amparada por forte estrutura regulatória e dotada de proteção legal, exatamente por ser um serviço público essencial. Por outro lado, sujeita-se a tarifas que não estão abertas a qualquer processo de negociação entre o consumidor e a distribuidora.
O consumidor no ACL, por sua vez, faz uma troca, por meio do qual ele abre mão da proteção legal conferida no ACR, em contrapartida ao poder de planejar como a energia elétrica comporá a sua base de custos. Usando uma analogia, o consumidor do ACL “compra um seguro” (ou hedge) para adquirir energia elétrica a um preço pré-determinado. Ao se permitir que ele vincule o pagamento da energia em um contrato no ACL com base no consumo, em condições distintas ao pactuado em contrato, ele estará usufruindo um benefício conferido ao consumidor cativo, a preços disponíveis apenas no ambiente livre.
Os itens (5), (6) e (7) podem ser analisados em conjunto por terem estreita correlação. Aqui, saímos da indagação sobre o direito de se pedir uma repactuação contratual (e qual seria a melhor forma de se amparar este pedido) e passamos a avaliar como uma eventual repactuação pode ocorrer, tendo em vista a equação econômica que ampara estes contratos.
Com isto, a pauta de negociação ou a decisão, seja ela judicial ou arbitral, deve analisar como o impacto recebido pelo consumidor ou pelo distribuidor poderia ser compartilhado com os vendedores de energia e se (e como) estes vendedores poderão, por sua vez, repassar o impacto de um novo equilíbrio contratual às suas respectivas contrapartes contratuais.
Aqui, a análise será diferente nos dois ambientes de contratação, embora o resultado final seja análogo.
A cadeia de contratos de compra e venda no ACL baseia-se em registros de compra e de venda efetivados pela CCEE. Caberá a esta entidade verificar se o agente vendedor tinha lastro para amparar suas vendas, seja este lastro provido por um contrato antecedente ou por meio de lastro físico de geração, sendo certo que todos estes lastros são desvinculados do consumo da energia. Logo, é nítido que a alteração de uma obrigação que afete um lado contratual, sem que o outro lado possa repassar tal alteração à sua cadeia de fornecedores importará, não uma realocação de riscos financeiros, mas a sua simples transferência, passando de uma parte (que os assumiu) para a outra (que não os assumiu).
No ACR, teremos um problema distinto na sua essência, mas similar nas consequências. O agente gerador não tem qualquer de suas obrigações alteradas pelas medidas que impactaram os distribuidores. Suas obrigações, ao revés, continuam intocadas, devendo ele estar sempre pronto para gerar energia com base nas ordens de despacho do ONS, não podendo, assim, reduzir os seus custos proporcionalmente ou em resposta a uma redução de faturamento. Esta situação se agrava nos contratos decorrentes de leilões de energia nova, na medida em que o gerador usa as receitas contratuais para amortizar um investimento já integralmente efetuado e entregue. Tratar-se-ia, portanto, de transferência pura e simples de riscos contratuais, retirando-os da parte que os assumiu e atribuindo-os para aquela que não os assumiu.
8. Conclusão:
As conclusões acima poderiam fazer supor que eu defendo a inaplicabilidade de qualquer forma de repactuação de preços e condições contratuais, em contratos de compra e venda de energia. Não é esta a minha opinião e nem o meu objetivo. Não creio que seja possível ou mesmo recomendável que se assista passivamente empresas entrarem em dificuldades econômicas e financeiras, sem que a elas se ofereça qualquer meio de proteção, especialmente se tal dificuldade tem por origem um fato de proporções globais, e se este fato contém características que o equiparem a eventos de força maior ou a causas externas que mudem o racional econômico que motivou a celebração de determinado contrato.
Por outro lado, os meios tradicionalmente oferecidos em direito para amparar pleitos de revisão ou reequilíbrio contratual ou mesmo de desoneração de obrigações e responsabilidades não podem ser vistos de forma simplista, apartada do arcabouço jurídico regulatório que os ampara e da sua lógica econômica, e muito menos sob o ponto de vista de uma única parte.
Qualquer solução que seja alcançada terá que ser equitativa e tecnicamente justificável, sob pena de agravamento de uma crise econômica, da diluição de um ambiente de segurança jurídica ou mesmo de transferência indevida de riscos de uma parte a outra. Idealmente, devem ser buscadas formas de solução consensual de conflito, como a negociação ou a mediação entre as partes.
No caso dos pleitos de revisão contratual das distribuidoras, por se tratar de serviço público essencial, e por impactar investimentos em infraestrutura e a própria operação de um sistema elétrico interligado, os processos negociais deverão envolver as autoridades governamentais competentes.
É fundamental, por fim, que os integrantes do Poder Judiciário e membros de tribunais arbitrais tenham consciência de que os impactos de suas decisões não terminam na revisão do contrato a eles levado em um processo, podendo ter projeção muito maior.
[1] http://www.ons.org.br/paginas/sobre-o-ons/o-que-e-ons (em 04 de maio de 2020).
[2] A energia, sob algumas formas, pode sim, ser armazenada. É o caso, p.ex., da energia potencial (água nos reservatórios) e da energia química (em baterias ou em materiais combustíveis). O processo de geração de eletricidade é, assim, muito resumidamente, a conversão de um tipo de energia (potencial, química ou nuclear) em outra (elétrica), esta sim, impossível de ser armazenada, da mesma forma que a luz ou o vento.
[3] Esta regra não é absoluta, havendo alguns tipos de leilão que permitem a participação de outros agentes setoriais na qualidade de vendedores, como por exemplo, as comercializadoras de energia.
[4] Os leilões de energia merecem um trabalho a parte, pois envolve uma coordenação de atividades entre todos os agentes reguladores, abrangendo a elaboração de regras gerais pelo Ministério de Minas e Energia (MME) e pela ANEEL, o planejamento da expansão do sistema elétrico e a habilitação de projetos pela Empresa de Pesquisa Energética (EPE) e a realização do leilão pela CCEE. É recomendável uma visita ao site de cada uma destas entidades, para um melhor entendimento de suas respectivas esferas de atuação e sobre os tipos de leilão disponíveis.
[5] A incomunicabilidade dos dois ambientes de contratação não é absoluta. Cabe mencionar o mecanismo de venda de excedentes (MVE), que permite às distribuidoras oferecerem energia excedente para os participantes do ACL.
[6] Caso a ligação seja feita diretamente na rede básica de transmissão, os contratos serão chamados de contrato de conexão ao sistema de transmissão (CCT) e contrato de uso do sistema de transmissão (CUST), e serão celebrados entre a parte que acessar este sistema (gerador, distribuidor ou consumidor, conforme for o caso) e o ONS.
[7] É pertinente mencionar que determinados consumidores de energia (grupo A), embora paguem pela energia apenas com base em seu consumo efetivo, são também obrigados a pagar uma parcela referente à disponibilidade dos serviços de transmissão e distribuição como elementos componentes de sua tarifa. A revisão desta obrigação em função da pandemia está sendo pleiteada perante a ANEEL.